Carmen Sílvia Musa Lício
Quando conheci a sua história, fiquei muito impressionada, pelas coisas tristes pelas quais passou durante toda a sua infância, pelo abandono por parte dos seus familiares, pela família completamente desestruturada e sem condições mínimas para poder dar uma vida digna, em todos os aspectos...
Tive dó, sim, muita pena, não daquelas que simplesmente deixa o outro como coitadinho. Mais do que isto, senti uma vontade enorme de ajuda-la a esquecer os seus traumas, dar amor, atenção e uma vida digna, estudo e um futuro mais promissor. Senti uma imensa compaixão, verdadeira empatia.
Sua psicóloga me procurou no posto de saúde onde trabalhávamos, para me pedir uma opinião, sabendo da sua necessidade premente de ir para um abrigo, devido à sua irmã te-la expulsado de casa (disse que ela ia ter um bebê e não poderia cuidar de duas crianças, que ela já tinha idade suficiente para se virar!!!). Fiquei muito sensibilizada e pedi para ela pedir um dia de prazo e depois mais outro... Enquanto isto, conversei com meus filhos, que foram prontamente solidários. Na tarde seguinte, após conhece-la, fomos, eu, a psicóloga e a Lú, ao Fórum de Taboão da Serra. Não disse a ela o que planejava, pois não quis dar falsas esperanças. Lá, na entrevista com a assistente social, deixei claro que queria ficar com ela por um tempo, para ver se "dava liga", e que depois meu desejo era adota-la. Nesta época a Lú tinha 11 anos, quase doze, mas tinha ainda o corpo de uma menina, e uma imensa tristeza estampada nos olhos. A assistente social disse que "não era tão fácil assim", mas o juiz, para espanto meu, já me deu logo o pedido de adoção, com prazo de 3 meses.
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Foi uma época difícil, de "pisar em ovos", de nos conhecermos aos poucos, de tentarmos não "atropelar a outra", respeitarmos o modo de encarar a vida da outra. Eram mundos bem diferentes e distantes, e o grande desafio era aprendermos a conviver pacificamente, trocando experiências, fazendo elos de ligação...
Eu, do meu lado, tentei deixa-la à vontade em casa, na convivência com a minha família. Minha família, com o "pé atrás", sem saber se eu havia feito uma opção viável... Meus filhos, mesmo assim, foram a favor, dando-nos todo o apoio.
Logo que chegou, tinha medo de dormir sozinha e como eu continuo a dormir em uma cama de casal mesmo após a minha separação, convidei-a para dormirmos juntas. Fiquei impressionada ao ver que dormia em posição fetal, parecendo um gatinho enrodilhado aos pés da cama... Nem parecia que estava ali. Parecia não querer incomodar, passar desapercebida.
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Como eu havia comprado várias bonecas para servir de modelo para fazer roupinhas de tricô e crochê para as bonecas da minha sobrinha, eu as dei para que ela pudesse dormir com elas e, pouco a pouco, ela começou a conversar comigo, enquanto eu fazia roupinhas para as suas "novas filhinhas". Foi uma forma de nos aproximarmos de uma maneira espontânea e informal. Também comecei a fazer pulseiras e colares de miçangas, iniciando uma conversação...
Comíamos em família, e ela aprendeu a rir muito das palhaçadas do meu filho caçula, com 22 anos, e a se divertir também, fazendo piadas a respeito de tudo e de todos... Aprendeu também a comer mais frutas, verduras e legumes, a experimentar coisas novas; a ser parte integrante da nossa família. Aprendeu coisas básicas como tomar água e a se alimentar melhor, pois, como disse, na sua família só comia pão, sucos de saquinho e sopas de macarrão....
Uma coisa que me deixou impressionada logo no início foi como ela conseguia se arrumar, se maquiar e cuidar dos seus cabelos, penteando-os com cuidado, domando-os com presteza. Saia sempre muito bem cuidada, diga-se de passagem, muito mais cuidada do que eu, que sempre fui tranquila neste sentido. Ela já tem um estilo todo seu, sendo bem estilosa e já sabe ousar, criar, dando sempre um novo visual às roupas de sempre.
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E assim fomos aprendendo a conviver e a crescer, apesar de eu ser duramente questionada por colegas do trabalho, parentes, amigos e pessoas que acham "um absurdo você ajudar outras pessoas", já que não estão dispostas a fazer o mesmo, muito menos tentar. Percebi que mais gente do que eu previa torcia para que tudo desse errado; uma tristeza... Fomos questionados diuturnamente também por nossos valores, conceitos e preconceitos. Questionados por ela, por nós, pelos outros, pela nossa vivência e convivência...
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Um dia, quando ela percebeu que meus filhos estavam um pouco enciumados, resolveu me chamar de "mammy" em vez de mãe, e chamá-los de "amiguinhos". Foi uma maneira de ela mesma minimizar e tentar solucionar o problema. Fiquei surpresa com a sua percepção e com a sua maneira rápida e pronta de resolver mais este dilema. Uma sabedoria intuitiva provinda da necessidade de sobrevivência...
Seu primeiro aniversário em família foi na casa da minha mãe e foi muito festejado, o que a deixou muito feliz; disse não se lembrar de ter tido uma festa sequer de aniversário.
Minha mãe a acolheu como a uma neta, o que foi estreitando os nossos laços de família. Aos Domingos, sempre visitamos a minha mãe, e almoçamos com ela, passando toda a tarde, voltando para casa só à noitinha, depois do lanche. Lá ficamos em família, conversamos, assistimos filmes e entramos na internet... A Lú gosta de passar horas na frente do computador, entrando em redes sociais, "pesquisando coisas", o que a fez ficar mais longe do nosso convívio. Por diversas vezes tive que pedir e negociar para que almoçasse conosco. Depois, ia ao Supermercado com o meu filho mais velho, que mora com a minha mãe, e lá tomava um milkshake de Ovomaltine, voltando feliz da vida.
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Desde o início, "amou de paixão" meus dois sobrinhos, de 5 e 6 anos, se mostrando muito empolgada em brincar com eles, ajudando a cuidar deles enquanto estavam próximos. Até hoje os três são muito unidos, muito amigos. Creio que isto se deve ao fato de eles serem adotivos e de terem uma idade em que pode ainda curtir um pouco da sua infância perdida, com direito a bonecas, faz-de-conta e afins...